sábado, 14 de junho de 2008

A cultura da impunidade

Lygia Rocha - (Publicado no jornal Diário Comercial 06/07/2007

"Há duas semanas atrás a atriz Marília Pêra deu uma declaração ao jornal O Globo sobre a impunidade no Brasil que me chamou atenção. A atriz disse que “o brasileiro tem muito medo de autoridade, que no nosso país é confundida com autoritarismo”. Ela seguiu falando que “a falta de limite vem do núcleo familiar”, que os pais dão o máximo de liberdade às crianças por medo de dar limites, transformando-as em selvagens, ressaltando que na essência o que falta é educação. Analisando essas afirmações e confrontando com o comportamento das crianças e dos jovens brasileiros podemos observar que a maioria não é educada para pedir licença, dizer obrigada ou, principalmente, para respeitar o espaço dos outros. Muitas pessoas fumam em local proibido e se alguém porventura reclamar respondem que “os incomodados que se mudem”. Até um ato privativo como fazer xixi, ultimamente tem sido feito por homens de todas as classes sociais, de maneira exposta na rua, na praia, como tantas fotos têm estampado os jornais. Hoje em dia, de forma geral, não se consegue comer em um restaurante sem ser incomodada pela arruaça ou birra de crianças nem às duas horas da manhã, quando elas já deveriam estar dormindo em casa. Quando os pais saem para comer fora levam-nas porque não têm com quem deixá-las. Eles ficam conversando com os amigos e esquecem que crianças, como diz um amigo meu, têm um “tempo de validade”. Quando a paciência de esperar acaba, começam a enlouquecer os que estão a sua volta de modo a conseguir que os adultos façam as suas vontades. As instituições brasileiras vêm dando mostras de falência a cada dia. As crianças estão completamente abandonadas uma vez que nem os pais e nem a escola ensinam os princípios básicos da educação e das normas de convivência. Os pais, ocupados com seu trabalho para ganhar dinheiro e subir na vida, preferem fornecer o luxo a colocar os filhos em uma escola que exija o cumprimento das obrigações. Como decorrência, as escolas para sobreviver vão abrindo mão da qualidade do ensino e, em especial, da orientação para a vida social, na medida em que a maioria dos responsáveis recrimina o uso de autoridade. A cultura nacional modificou-se bastante nos últimos anos. Um exemplo claro da falta que faz uma instituição que eduque de fato para a vida é que na maioria das famílias abastadas da sociedade brasileira a riqueza não sobrevive à terceira geração. Exatamente porque não dão a devida importância à formação moral e ética dos filhos. As famílias atêm-se ao cumprimento dos pré-requisitos exigidos pelo mercado de trabalho para um bom currículo escolar uma vez que, para essas crianças, o emprego é obtido através da rede de relacionamento dos pais. Na semana passada ocorreu um fato que veio confirmar as declarações de Marília Pêra e demonstrar que um dos maiores problemas do Brasil nos tempos atuais são os valores sociais destorcidos vigentes no ambiente de grande parte das famílias. Cinco rapazes da classe média alta moradores de condomínios de luxo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, assaltaram e espancaram uma doméstica em um ponto de ônibus na madrugada de domingo, quando voltavam de um programa. Ao serem denunciados por um taxista, que presenciou a agressão e anotou a placa do carro deles, e levados para a delegacia, justificaram a barbárie alegando que pensaram estar agredindo uma prostituta. Em nenhum momento explicaram a razão da agressão, mesmo porque no código cultural deles são permitidas “brincadeiras” como a que fizeram, de roubar e agredir pessoas só porque são de classe social mais baixa. Principalmente se forem prostitutas! Não houve da parte deles e de seus pais qualquer sinal de arrependimento pelo ato que cometeram. Muito pelo contrário, sentiram-se “indignados pela injustiça de estarem sendo presos junto com ladrões e assassinos”. Sequer passou por seus pensamentos que de fato fossem tão ou mais ladrões e assassinos que os seus companheiros de cadeia, uma vez que as suas atitudes são um meio de “diversão”, como no Coliseu Romano com os leões. O pai da doméstica, por outro lado, o Sr Renato Moreira Carvalho, um modesto pedreiro, deu uma declaração equilibrada na mesma linha da atriz, dizendo que “atualmente os jovens têm excesso de liberdade, excesso de objetos e falta de limites e que muitos pais sabem pouco a respeito da vida dos seus filhos fora de casa”. Já o pai de um dos agressores mais atuantes, o Sr Ludovico Ramalho Bruno, um empresário, em uma típica manifestação de preconceito e autoritarismo, declarou-se revoltado contra a punição das “crianças”. Afinal para ele, elas podem beber, dirigir, roubar e até matar na medida em que pertencem a uma classe social mais elevada e, além de tudo, “estudam e trabalham”. Infelizmente, os brasileiros já se acostumaram com a impunidade. Até porque, nenhuma figura importante denunciada ficou na prisão mais do que uns poucos dias por qualquer crime que tenha cometido, confessadamente ou com todas as evidências assim o indicando. A cultura do país ainda preserva valores de uma aristocracia decadente, que vem tentando se manter no poder desde os tempos da escravidão, e em que as pessoas valem pelo que possuem e não pelo que são. Esse tipo de comportamento pode explicar a necessidade das pessoas de acúmulo de bens e esse consumismo desenfreado que vem ocorrendo na sociedade. Aqui, ainda continua valendo a máxima do “Por acaso você sabe com quem está falando?”

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